Eu morria. Cada gota de sangue e lágrima que saiam da minha mãe, me matavam aos poucos. Quando eu era criança, assistia escondida a tortura que ela sofria. Atualmente, assisto como quem assiste televisão, num dia de domingo. Isso não quer dizer que eu tenha parado de morrer ou perdido a sensibilidade, pelo contrário, eu já morri tanto, que praticamente virei um zumbi. Assisto sem dor, só quero saber de comer minha torrada com nutella, sentada de mau jeito no sofá velho, com os pés sujos para cima e meu fone de ouvido quase encostando nos tímpanos. Ouvindo aquela musica internacional, da qual não sei a tradução. Cantarolando a melodia, ritmada com os gritos da esposa fiel do meu padrasto, vulgo minha mãe.
Malditos pirralhos de hoje em dia, não sabem nem ver uma mulher apanhando, ficam chorando e gritando para o pai deles parar, sem saber que isso só o motiva a bater mais. Bêbado quer audiência, por isso sempre ignorei. Estou quase morta de tanto ignorar.
Quando aquele monstro fedendo a álcool tentava me assediar, eu lembrava-o que era aidética, e rosnava fingindo que ia morder-lo. Burro como uma porta, o tolo saia correndo de medo. Quem me dera tivesse mesmo doente e pudesse transmitir esse vírus com uma mordida. Morderia ele, bem na nádega direita, na parte mais pomposa, e tentaria arrancar um pedaço. Morderia minha mãe, bem na auréola do seio esquerdo, onde fica tatuado “Raimundo”. Morderia o nariz daquele pirralho, para não ficar xeretando minhas coisas. Não morderia a pirralha, ela é suportável, e também, quem iria cuidar do Mostarda? Ela é a única que tem a paciência de limpar as fezes (isso quando não come escondido) e dar banho no meu vira-lata amarelo. Por fim, eu morderia meu pulso, só para perder sangue rápido e morrer com agilidade. Afinal, todos vamos morrer de qualquer jeito.
Pena que tudo isso são apenas planos, e mais, não há como coloca-los em prática.
Meu quarto é meu mundo, ele está dividido por continentes e faz parte de um universo que é esta casa. Quem sabe a previsão Maia sobre o fim dos tempos, não estava se referindo ao meu mundo? Então, me dediquei a estudar.
No quarto dia de viagem, cheguei à conclusão que chegaria mais rápido se a pirralha e o Mostarda estivessem puxando uma carroça, comigo e com as bagagens em cima. Mas não posso reclamar, nenhum outro caminhoneiro quis dar carona para uma jovem e seus dois animais de estimação. E assim prosseguimos. Eu e o caminhoneiro firmamos um pacto, ele nos dava a carona, e eu dormiria com ele todas as noites da viagem, o que obviamente me arrependi, pois ele prontamente travou o velocímetro nos sessenta quilômetros por hora. Mas, na primeira noite, logo desfizemos o pacto. E a falsa AIDS me salvou novamente. Decidimos ser apenas amigos, e então o acordo girava em torno de uma carona até Brasília, por uma amizade crua durante a viagem. Com a proximidade do décimo segundo dia de viagem, notei algo estranho no meu amigo Sebastião, ele não dormia há dias, e vivia tomando remédios. Quando eu o questionei sobre qual doença ele sofria, Tião abriu um sorriso desdentado com algumas gargalhadas misturadas com tosses de fumante, e me respondia que não tinha nenhuma doença.
Até que, na manhã do décimo terceiro dia de estrada, o Tião estava estranho, aparentava um retardo mental repentino. Nem reclamava das lambidas do Mostarda em sua mão, nem do choro de fome da pirralha e o mais estranho: da minha música alta. Esses três acontecimentos chateavam muito Tião durante toda a viagem, mas nesta manhã, ele simplesmente ignorava. Até que uma mosca (das muitas que havia dentro do caminhão) pousou na íris dos olhos cansados do velho Sebastião, mas o caminhoneiro não teve reflexo nenhum, nem suas pálpebras fechavam para expulsar o inseto. Foi aí que puxei o freio de mão, coloquei a mochila na pirralha, abri a porta, a joguei para fora do caminhão, depois abracei o Mostarda e me joguei em seguida. Alguns metros à frente, o caminhão perde o controle, e entra na contramão, chocando-se numa colisão frontal com outro caminhão. Ali, era o fim da linha para o saudoso Sebastião.
A pirralha me deu um susto enorme, pois a encontrei inconsciente e ensangüentada. Mostarda agüentou firme e amorteceu minha queda, deixando apenas alguns dentes ali no chão. A polícia chegou e nos levou para um depoimento.
Eu sabia que precisava morrer, eu estou morrendo, porque fugi do acidente? Fiquei muito insatisfeita com minha atitude, afinal, que belo final seria para meu corpo, acabar esmagado por um gigante motor e todo perfurado por cacos de vidro. Não sentiria nem dor, e ainda esqueceriam do prejuízo que deixei na minha cidade. Era para eu ter salvado o Mostarda, com a pirralha para protegê-lo. Perdi a chance.
No caminho até ao hospital mais próximo, ouvi no rádio do policial sobre meus feitos históricos em Nova Providência, minha cidade natal. Descreviam-me como um monstro, e não segurei a risada, de imediato pensei “ah, isso porque vocês não tiveram oportunidade de conhecer Raimundo”. Se a pirralha sobreviver, poderia até me defender, quando souber o que fiz por mim, pelo Mostarda, por ela e pelo mundo!
O policial era genro do Sebastião, mundo pequeno não? Contei a ele sobre como estava satisfeito com o casamento da filha, e aumentei os fatos. Falei sobre Tião sugerir a adoção da pirralha pelo casal infértil. O policial instantaneamente acelerou o carro, como se tivesse com o pai na forca, ou a filha morrendo. A partir daquele momento, realmente estava perdendo uma filha.
Já dei um jeito na minha mãe, no Raimundo, no pirralho e na pirralha. Agora somos apenas eu e Mostarda no mundo.
Então resolvi morar na cadeia. Fazer amizades, ter novos horizontes, comer de graça, ter um teto e roupa limpa. Decidi contar toda a verdade para o policial. Inclusive, tomei a culpa da morte do velho Tião, para garantir que não ficaria em algum tipo de “liberdade assistida”, já que é tão difícil ser preso no Brasil. A família do Tião, exceto o genro, me odeia. Mas é melhor que me odeiem e tenham boas lembranças do velho suicida. O Mostarda foi para um centro de adoção de cães, em outras palavras, está preso assim como eu. A pirralha sobreviveu, está paralítica, mas recebe mais amor do que eu, Tião e Mostarda juntos. Minha mãe parou de sofrer, não apanha mais, não chora mais não sofre mais e como sempre sonhou, estará pela eternidade ao lado de Raimundo. Sabe? Foram enterrados juntos e nem a morte os separou, fiquei sabendo que morreram de mãos dadas. Não conseguiram encontrar o corpo do pirralho. Mas quem lembra dele?
Na prisão, ando morrendo menos do que já morri até aqui. Às vezes bate uma saudade das minhas torradas com nutella.


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1 Response
  1. Jairo Says:

    Bem maluco, mas é divertido e prende a atenção. Tem que ter continuação...


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